I
No terminal rodoviário do Tietê
leio no jornal: um pântano congelado há menos de um milênio
foi detectado enterrado
sob a calota polar setentrional de
Desdêmona,
lua de Urano.
Sob o seu leito repousarão, em embalagens de óleo amniótico, cristalizável,
as mumificações de
Gog e Magog,
entre túneis e calabouços metalíferos
e jazidas de
insulfilm.
II
Não é exatamente a Terra
que é insubstituível:
irrecuperáveis são, antes, estas gengivas feitas de açúcar e goma-xantana,
e as dentadurazinhas de feltro comestível,
que escorrem pelas prateleiras de acrílico
do box onde se vendem jujubas,
e que ostentam, diante de nós, em sua avalanche preguiçosa,
cascatas de fobia melecada,
paralisante, balofa e sintética,
e rósea, rosadíssima, gorduchinha.
Embora nunca se enxerguem uns compradores,
e a loja de
hipopós,
minhoquinhas e
yummies,
kirbies, dip-’n-licks,
pirocópteros, push-pops e
palhacitos de acerola e morango
esteja sempre vazia,
mantêm-se acesas, para
sempre,
suas lâmpadas de isopor e azoto.
III
Na sexta, amanhã mesmo, tomarei o ônibus de volta de Paraty, ao crepúsculo.
Mandarei um vídeo de
cumbia jujeña
para minha namorada.
As luzes me serão, pouco a pouco, somente as fagulhas do whatsapp.
No visor, sobre a cabine do motorista –
telinha em formato de charuto –
perceberei a residência de um fantasma come-come.
Num alerta vagaroso,
a pequenina assombração compassadamente surgirá, em sua tarja pixelada,
para indicar aos sonolentos
a ocupação ou desocupação
do banheiro do cometão, aos fundos do
corredor.
Ao desaparecer o guloso ectoplasma do atari,
ao fim de seu trajeto de quarenta centímetros,
meu coração se ferirá com a sensação
de que terá havido uma cifra ou um segredo
para além das informações automáticas,
para além do “boa noite, passageiros”,
e para além, por fim, da impressão
de que a cabine estará trancada,
como cripta, cloaca ou
fosso
por Tranca-Rua-das-Almas.
IV
Para minha namorada,
a degustação de qualquer doçura
se lhe tornou proibitiva
desde que ela adoeceu, numa madrugada de noventa e oito,
e perdeu os
pômulos.
Ela vinha apresentando sinais de enfermidade há muito
tempo,
só que eu acreditava que os sintomas não seriam
duradouros.
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Gabriel Morais Medeiros (Campinas,1988) é autor de "Andrômaca, quarenta semestres" (2016) e de "Pornografia em extinção" (2019), livros de poesia publicados pela Patuá. Trabalha como professor de literatura, principalmente no ensino médio, desde 2007. É responsável pela Ofícios Terrestres Edições, criada em 2019.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEsse sentimento de perda e angústia, numa viagem de comerão numa noite escura, lembrando de uma possível doença de sua namorada
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