sucumba à fome por
pessoas. não saio às ruas, não vejo
o sol lá fora, esqueço como se
monta num abraço. arde a
vontade por espaço.
o chão, o laço com quem nunca vi.
é quase como crer nos traços da
invisível mordaça
presenteada. quero,
deus, que seja o aceno no fim da rua
deserta. que o céu seja a cama que
me apanhe num mergulho
às avessas. e aqui,
nesse corpo insólito, é bom fazer
festa com o pouco que resta das horas.
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a palavra, esta marca
amarga, aquela ponte larga entre o
silêncio – o turvo enredo ao meio – e
a crise ruidosa da fala – da
grafia envenenada no papel – o
grito encrespado no vocábulo.
palavra:
de todos os nós
a que nunca desata.
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terrário
para Glória
de presente, um pedaço do mundo. um pouco da terra. o extrato da vida.
o microcosmo num espaço de vidro.
a respiração. o peso pulsante
do ciclo restabelecido no
circuito das águas. um corpo que
se alarga pra dentro. leve no peito
tudo que for de muito. tudo quanto
for vivo no encanto do mundo. leve
consigo a respiração da terra, o
verde que é síntese e luz. de presente,
minha entrega. o desejo de colheitas,
o destino vindouro, o afeto que
plantamos. leve consigo o que não
sabemos das sementes por brotar;
o caule, o tronco, as folhas e as raízes...
leve o amor que precisa ser regado,
o fundo fosco do prato e, mais que
tudo, leve o futuro a ser plantado.
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euforia
dentro do teu olhar
uma faísca rubra
acende o peito eufórico
da palavra num verso
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i
acho que te escrevi
um poema por causa
do teu livro. acho que
te fiz umas imagens,
talvez também um livro.
ii
a gente se descobre
nesses lugares longes
onde ninguém se busca
e quase nunca estamos.
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a pele era toda suor num acúmulo
de sal que temperava o risco anônimo
das mãos. era um escândalo sentir esse
arranhão salobro ao longo das costas.
nenhum pedaço de pele escapava.
o território orgânico da dor
aumentava conforme se encravavam
estocadas durante o espaço enérgico
do tato. aquelas mãos eram tão cegas,
que erravam o destino escrito nas palmas.
deixavam uma coleção incompleta
de bocas se abrir para receber
o sabor adornado do poema.
aquelas mãos tomavam sal nos dedos,
com festejos onde os infartos desciam
por corações inchados. eram muitas
implosões malsucedidas. o peito
farto dessas dores se enchia de
poesia. a letra rasa do verso
respondia à tortura desses vãos,
que queriam agarrar a palavra
num verso qualquer. até idiomas
eram inventados para que coubessem
tumultos impossíveis nos pulmões.
mas a salinidade do poema
se impunha, seu gosto enchia de sede
a língua que se perdia na própria
saliva. não havia gesto que
fundisse a saciedade da sede
com a hipertrofia desses dedos que
se agarravam a qualquer resquício de
sílaba. nenhum pedaço de pele
escapava. nada que se dizia
encaixava no estranho mapa das
mãos. a pele calejada das palmas
se voltava contra os próprios incêndios.
queimava-se tudo: desde a derme
ao oxigênio, tudo que tangia
o comprimento dessa trama ígnea.
o poema crescia nesse invento
terrorista. queimava-se de tudo.
explodia-se o tenro sabor da
melodia. tacava-se sal nos
olhos do verso que se erguia, a fim
de assegurar a ruína que se
erigia. o poema então foi morto
vítima de sua própria elegia.
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Fábio Pessanha é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre suas pesquisas, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Assina a coluna “palavra : alucinógeno” na Revista Vício Velho. Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos Afins, Escamandro, Ruído Manifesto, Sanduíches de realidade, Literatura & Fechadura, Gueto, Escrita Droide, Gazeta de Poesia Inédita, Mallarmargens e na própria Vício Velho.
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