Pular para o conteúdo principal

4 poemas de Divanize Carbonieri


Asfixia

asfixia das salas de estar
nossa onipresença ainda sã
passeia pelas peças tomadas
por tantos alvéolos flutuantes
num ar paralisado e viscoso

as vias que levam à varanda
também estão atravancadas
as mãos em torno da garganta
só não estrangulam a vontade
de apenas voltar a respirar

o pulmão fibroso aguarda
sobre a travessa de faiança
que o desfaçam em filetes
para alimentar os pássaros
pousados no nevoento quintal

muitas criaturas ainda vivem
embora a morte vã já tenha
contaminado nossas camas
conectadas que estamos aos
poucos respiradores de sonhos


o último sopro será dado
entre as parcas paredes
da casa prestes a sucumbir
enquanto os cães ocupam
o asfalto que cede sem nós


***********
Verniz

o ovo não escorregou da mão
nem foi o leite que se derramou
o pão não se perdeu para o bolor
nem a carne se encheu de vermes

se a comida permanece intacta
por que há a sensação de falta
uma escassez que não é de víveres
ameaça o verniz de normalidade

ninguém mais pode ser abraçado
nada agora ultrapassa a película
as pessoas são nomes deslizando
rápido pela tela do computador

um dia começa assim como termina
a roupa lavada e pendurada no varal
amanhã será recolhida ou talvez não
quando muito um sonho ou poema


**********
Pestilência 

se o elefante permanece aqui com toda sua força e peso
a mobília dessa casa se torna um estorvo
não há fresta que se abra para o dia
o que restava do ar está sendo sugado por sua tromba

as muitas formigas foram mortas por um tsunami de baygon
seus pequenos cadáveres pretos à vista
o esforço imenso que é recolhê-los
para não ter diante dos olhos nada que lembre a morte coletiva

livres de todo o malefício encontram-se apenas as árvores
plantadas sobre as costas das serpentes
esgueirando-se sinuosas e febris
pela dimensão do terreno cercado por muros altos e grades

a pestilência percorre as avenidas da cidade esvaziada
agarrados ao lombo das partículas de pó
os males encavalgam a atmosfera
esperando por aquela que arremete contra o seu destino


**********
Insignificante

durante essa quarentena
admiro as coisas mínimas
o insignificante saturado
do magma da experiência

numa das vigas de madeira
um gafanhoto na teia de aranha
tão verde quanto um broto
preso pelos fios das entranhas
de sua anfitriã e assassina

quando o vi já estava morto
não pude desemaranhá-lo
mas se pudesse qual seria
o outro alimento da aranha

enquanto eu comia e dormia
o destino desse gafanhoto
era selado na minha casa
no correr estático dos dias

enquanto eu me distraía
pensando em nossa penúria

          _

entretêm-se os deuses
e a teia volta a capturar


**********

Divanize Carbonieri é autora dos livros de poesia Entraves (2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, Grande depósito de bugigangas (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, A ossatura do rinoceronte (2020) e Furagem (2020), além da coletânea de contos Passagem estreita (2019), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi segunda colocada na categoria conto na edição de 2019 e finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019. É uma das editoras da revista literária digital Ruído Manifesto e integra o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras/MT. Seu site pode ser acessado aqui

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Marina Magalhães | três poemas

Prelúdios do afogamento. Para violino. Por fim, quando deixarás de alimentar os teus naufrágios? Me perguntaste sem saber que tripulação alguma deseja a própria morte. Nada podem fazer se a carcaça, já tão cheia de buracos, continua       sempre            a afundar.                   A marcha                   fúnebre faz                   glub.                   glub.                   g                   l                   u                   b. *********** Amor de prateleira Os dias vêm sobrando, transbordadas as horas pelo vidro. Tempo deixado em conserva é salgado demais p...

Francielle Villaça | três poemas

Alongamento A dor nos encurrala para o presente ************ Exercitar o conformismo mesmo que por um instante, ou melhor: ainda que por um instante sobretudo por mais um instante. Não, não atenuaremos o confronto: o conformismo nos atenta ao instante pouco a pouco até que os ossos estalem. ************ O freio de emergência habita alguma extremidade Tudo que é radical é, imanentemente, radical demais. Porque não há raiz sem mergulho. Porque ir até a raiz exige destreza, perícia, coragem. Raiz: palavra aguda. Palavra que destrona qualquer ilusão de fincar vida na superfície. Enraizar é um trabalho árduo. Mas, que em sua essência aguda, não vê outra possibilidade se não fincar. Fincar. Fincar em solo firme, fértil, mas nunca estável. Encurralados, a saída está na profundidade do nosso mergulho. ************* Francielle Villaça tem 20 anos, nasceu e mora em Vila Velha, no Espírito Santo. Atualmente cursa Letras - Português, na Universidade Federal do Espírito ...

Marcos Samuel Costa | seis poemas

Chamas  Não chamas o deus, ser não físico, sem matéria, sem húmus, amo, não queimará nenhuma lembrança, a força que fará não tem água, não apaga, ele próprio não queima. O pesadelo em teu quarto, gás vazado, fósforo acesso, estalos, os dedos se estalaram, o crime de tenebrosa vertigem, morra, a casa fica fora da área de perigo, habitantes ausentes na festa, habitantes fugitivos da guerra sem deus, atravessam o mar num navio em chamas. Não habitará nenhuma casa humana, na criação da terra o deus fez terra e mar, oceano é palavra moderna, queimou as paredes, vejam – a intimidade do homem exposta. O homem ficou sem paredes, o quarto sem segredos, queimou, junto das páginas dum livro antigo de Machado, junto a cartas, cigarros febris, famintas chamas, chamas chamas o deus, ele não é como tu de carne, não queima, não morre e vira mármore frio, terra e pó, cinzas da tarde quente, o paraíso ficou na parte obscura dos olhos, ficou na parte seca dos braços. ************ É no meio ...