Desperto às cinco da manhã para perceber que na minha rua já ninguém dorme de janelas abertas
Quantas pessoas desertaram?
Nesses amanheceres de dias vazios o tempo não tem asas
Tenho membros pesados como os dos sonâmbulos ou dos afogados
Sinto-me um inseto enorme sem cérebro.
Ensinem-me de novo a respirar, caminhar por ruas movimentadas, olhar janelas abertas, sem tédio ou morte ou desertores.
Nessas manhãs que a solidão come sucrilhos e maças argentinas, contemplo nas janelas fechadas, nas flores, nos ossos que aparecem sob a pele como após uma longa doença
Camadas de orvalhos
E canto baixinho uma canção de amor.
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Para não morrer tanto
Este tempo é de coisas que nos deformam
Como seres das espécies pelágicas
Vivemos acima dos sedimentos
Mas ainda há pele tua sobre os lençóis, nos discos acumulados, nas fotografias, nos meus dentes.
Seremos sempre deslocados na geografia
Como a cicatriz que deixaste, como uma tatuagem, uma explosão, uma catástrofe,
O lobo que fugiu da sua alcateia
E guardei no pulmão.
Das viagens guardo recordações que agora vão preenchendo as paredes
Quase como a massa de água dos oceanos
Mas ainda compro flores, ameixas, melancias, morangos e tangerinas
Antes que a esperança não seja só o calendário
O verão vá embora e leve esse cheiro de chuva e maracujá dos nossos corpos.
Para não morrer tanto
Deixarei acesa a lâmpada do corredor
Doce de caju na geladeira
Tudo que é de algodão nos armários do quarto
Nossa serenidade sem paralelo.
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Os olhos de minha avó
Houve um tempo em que eu não amava ainda
Mas as canções de amor traziam em mim uma nostalgia longínqua
Longínqua como os olhos de minha avó
Aos sessenta e cinco recordando os dezesseis.
Eu disse-lhe: não é você, é outra aquela que se esgueira defronte seus olhos.
Mas ela insiste em dizer: sou eu mesma.
Há quem nasça com a dor dentro de si
Como a semente de memórias.
Não quero aos sessenta e cinco recordar meus dezesseis
Minha dor é a de hoje
Não a dos anos longínquos
Em que não serei mais eu.
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A visita
Na tarde que Matilde me visitou
Encontrou-me folheando revistas e vendo programas na tevê sobre decoração de interiores.
Caia uma tempestade sobre a cidade.
Ficamos olhando o espetáculo da chuva e dos raios que acontecia ao nosso alcance
Na varanda onde ficamos.
A maquiagem de Matilde permanecia intacta sob a chuva.
Na tarde que Matilde me visitou e eu estava folheando revistas e vendo programas na tevê sobre decoração de interiores
Disse que não queria mais saber de casas perfeitas, reformas espetaculares e de programas sobre o assunto.
Recomendou-me Piet Outot e seu conceito de ver beleza na feiura
Nas flores que estão murchando
Que a ideia de beleza não pode ser previsível, que eu desconfiasse das palavras belo e delicado.
Na tarde que Matilde me visitou
Sua maquiagem permaneceu intacta sob a chuva e tive uma vontade insana de convidá-la para comer rabanadas, nem era natal.
Encostei devagar minha urgência no vazio da tarde, na tempestade, no brilho dos trovões, dos raios, no rosto maquiado de Matilde.
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