Pular para o conteúdo principal

5 poemas de André Merez


canto do oleiro

No barro,
navega o gesto,
o ventre liso da
terra, sua forma
imprevista estuda
o ângulo do braço,
gira em contorno e
a molda definitiva.

No torno,
nem um meneio,
um respiro preso,
o respeito ao ato,
o resto do respiro
e uma vida
na lida com o método,
na luta leve, o equilíbrio.
Não há pressa no ofício,
há engenho, um segredo.

No forno,
incandesce sua carne
e luz e fogo se unem,
corpo vivo em brasa.
Reluz a alma do barro,
vive sua origem maior
em brasa e se enrijece.

Na calma,
depois do fogo extinto,
depois do calor calado,
não deixa de ser barro,
no entanto é outra arte,
une o homem e a terra,
o profano e o sagrado.

**********

na última sessão do dia

Dorme,
dorme tudo o que se retira,
a fatia do dia, a faca, a fala
e o que é da vertigem real.

Dorme,
dorme o que queria, alçava,
a morte esquecida na tarde,
a triste tarde de sonolências.

Dorme,
Morfeu versado em Tânato,
esquece o dia, abraça a noite,
a sua mãe desesperada e fria
também dorme e, ao dormir,
alcança a eternidade desejada.

Como jamais se dormiu,
dorme todo, dorme inteiro,
fecha esses olhos definitivos,
encerra o mundo e seus ares,
encerra a fome de vida, a lida
e vai descansar de si mesmo.

Procura no sono absoluto
a absoluta ausência de si,
habita o longe, o longo e
vive esse mistério póstumo.

Medita, monge transfigurado,
na última sessão do seu dia e
no lótus perdido já reclamado,
dorme
    e morre
          e descansa
                   e mais nada.

***********

concessão


Este tempo em que vivo,
a suposta e adivinhada
permissão para vivê-lo.

Seu gosto, textura e cheiro.

Os avanços e vertigens,
seus meneios e demoras,
suas horas
abruptas,
seus olhos
acurados.

Olha-me ele
mais que eu possa sabê-lo.
Admira-me,
admiro-o e
baixamos ambos nossos olhos.

Prefiro não o calcular,
quero ser no tempo,
      ir no tempo
para não escravizá-lo,
até não me escravizar.

E breve,
e longo,
e música e vento,
compreender sua natureza de corcel livre,
sua feição de morte, seu ar de nascimento.

***********

muy viejo


Quando eu estiver velho,
velho como o Parra,
quero fazer uma fogueira
e queimar, um a um,
todos os desejos adiados.

***********

noturno


Eu quero ver a noite,
caminhá-la,
atravessá-la sem medo
e sem vozes,
fruí-la em suas vagas,
voá-la em seus ventos
e alcançá-la absurda.

A noite funda,
lá onde tudo descansa,
onde ninguém alcança,
em horas quase amenas
a noite afunda,
eleva seu arco,
estende os braços e cai.

Depois de tudo,
e a noite vazada,
chego ao seu fim.

Lá onde não há mais noite,
esse lugar de outros lugares,
outras noites mais distantes,
os azuis dilatam, o céu acaba
e tudo o que ninguém soube
revela-se no sumo da aurora.

**********

André Merez nasceu na capital paulista em 1973. Iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90. Cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós graduação defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. Autor dos livros Vez do Inverso (Editora Patuá, 2017) e Perfeição Acidental (inédito). Já teve seus poemas publicados em diversas revistas de literatura e poesia no Brasil e em Portugal como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Poesia Primata, Gueto, Germina, Usina de Letras, Escrita Droide. É editor da revista Poesia Avulsa.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Marina Magalhães | três poemas

Prelúdios do afogamento. Para violino. Por fim, quando deixarás de alimentar os teus naufrágios? Me perguntaste sem saber que tripulação alguma deseja a própria morte. Nada podem fazer se a carcaça, já tão cheia de buracos, continua       sempre            a afundar.                   A marcha                   fúnebre faz                   glub.                   glub.                   g                   l                   u                   b. *********** Amor de prateleira Os dias vêm sobrando, transbordadas as horas pelo vidro. Tempo deixado em conserva é salgado demais para gente [hiper]tensa. E amassados pelas quatro paredes, a pressão só aumenta. O medo não é que pare o coração. É que ele escorra para fora do copo de conserva, licoroso sobre a estante. O resto engarrafado em plástico sem rótulo. Fosse ele a sobra desvalida. Esquecido, até passada a data de vencimento. *********** Não posso me exilar de mim Melhor seria dar adeus à nossa pátria, é a história que

Ana Priscila | quatro poemas

Vigília A realidade é o pesadelo do qual não podemos acordar *********** Esforço O impossível me corrói por dentro, tripudiando a contento de cada esforço por expressá-lo. *********** Mote A morte no monte. Uma p     o     n     t     e Corta! Cena. O norte é a morte A morte é o mote. *********** Engaiolada Eu não sei por quê o pássaro ainda canta na gaiola. Queria ser mais como um pássaro *********** Ana Priscila é advogada, cristã, feminista, psicanalista em formação, professora de italiano, cinéfila, cozinheira autodidata, tenista amadora, enxadrista de araque, flamenguista inveterada, ruiva e nordestina, barroca e andina. Apaixonada por literatura desde a mais tenra idade, tem influências que vão de Kaváfis a Castro Alves. Seu interesse predominante está em investigar as experiências e sensações advindas do divã, traduzindo-as em tessitura poética. 

Francielle Villaça | três poemas

Alongamento A dor nos encurrala para o presente ************ Exercitar o conformismo mesmo que por um instante, ou melhor: ainda que por um instante sobretudo por mais um instante. Não, não atenuaremos o confronto: o conformismo nos atenta ao instante pouco a pouco até que os ossos estalem. ************ O freio de emergência habita alguma extremidade Tudo que é radical é, imanentemente, radical demais. Porque não há raiz sem mergulho. Porque ir até a raiz exige destreza, perícia, coragem. Raiz: palavra aguda. Palavra que destrona qualquer ilusão de fincar vida na superfície. Enraizar é um trabalho árduo. Mas, que em sua essência aguda, não vê outra possibilidade se não fincar. Fincar. Fincar em solo firme, fértil, mas nunca estável. Encurralados, a saída está na profundidade do nosso mergulho. ************* Francielle Villaça tem 20 anos, nasceu e mora em Vila Velha, no Espírito Santo. Atualmente cursa Letras - Português, na Universidade Federal do Espírito