No barro,
navega o gesto,
o ventre liso da
terra, sua forma
imprevista estuda
o ângulo do braço,
gira em contorno e
a molda definitiva.
No torno,
nem um meneio,
um respiro preso,
o respeito ao ato,
o resto do respiro
e uma vida
na lida com o método,
na luta leve, o equilíbrio.
Não há pressa no ofício,
há engenho, um segredo.
No forno,
incandesce sua carne
e luz e fogo se unem,
corpo vivo em brasa.
Reluz a alma do barro,
vive sua origem maior
em brasa e se enrijece.
Na calma,
depois do fogo extinto,
depois do calor calado,
não deixa de ser barro,
no entanto é outra arte,
une o homem e a terra,
o profano e o sagrado.
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na última sessão do dia
Dorme,
dorme tudo o que se retira,
a fatia do dia, a faca, a fala
e o que é da vertigem real.
Dorme,
dorme o que queria, alçava,
a morte esquecida na tarde,
a triste tarde de sonolências.
Dorme,
Morfeu versado em Tânato,
esquece o dia, abraça a noite,
a sua mãe desesperada e fria
também dorme e, ao dormir,
alcança a eternidade desejada.
Como jamais se dormiu,
dorme todo, dorme inteiro,
fecha esses olhos definitivos,
encerra o mundo e seus ares,
encerra a fome de vida, a lida
e vai descansar de si mesmo.
Procura no sono absoluto
a absoluta ausência de si,
habita o longe, o longo e
vive esse mistério póstumo.
Medita, monge transfigurado,
na última sessão do seu dia e
no lótus perdido já reclamado,
dorme
e morre
e descansa
e mais nada.
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concessão
Este tempo em que vivo,
a suposta e adivinhada
permissão para vivê-lo.
Seu gosto, textura e cheiro.
Os avanços e vertigens,
seus meneios e demoras,
suas horas
abruptas,
seus olhos
acurados.
Olha-me ele
mais que eu possa sabê-lo.
Admira-me,
admiro-o e
baixamos ambos nossos olhos.
Prefiro não o calcular,
quero ser no tempo,
ir no tempo
para não escravizá-lo,
até não me escravizar.
E breve,
e longo,
e música e vento,
compreender sua natureza de corcel livre,
sua feição de morte, seu ar de nascimento.
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muy viejo
Quando eu estiver velho,
velho como o Parra,
quero fazer uma fogueira
e queimar, um a um,
todos os desejos adiados.
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noturno
Eu quero ver a noite,
caminhá-la,
atravessá-la sem medo
e sem vozes,
fruí-la em suas vagas,
voá-la em seus ventos
e alcançá-la absurda.
A noite funda,
lá onde tudo descansa,
onde ninguém alcança,
em horas quase amenas
a noite afunda,
eleva seu arco,
estende os braços e cai.
Depois de tudo,
e a noite vazada,
chego ao seu fim.
Lá onde não há mais noite,
esse lugar de outros lugares,
outras noites mais distantes,
os azuis dilatam, o céu acaba
e tudo o que ninguém soube
revela-se no sumo da aurora.
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André Merez nasceu na capital paulista em 1973. Iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90. Cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós graduação defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. Autor dos livros Vez do Inverso (Editora Patuá, 2017) e Perfeição Acidental (inédito). Já teve seus poemas publicados em diversas revistas de literatura e poesia no Brasil e em Portugal como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Poesia Primata, Gueto, Germina, Usina de Letras, Escrita Droide. É editor da revista Poesia Avulsa.
Obrigado pela publicação, amigos da contempo!
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