efeito kahlo kuleshov
estou imóvel
suspeito que me tornei um quadro
com debrum de areia pequenas conchas
e pontas de cigarro
à minha beira está o mar em março
ele desatentamente cospe nos meus pés. e através
de mim desamarro o vendaval morse
/ não escutes. ainda estou imóvel
sobre mim-onde há uma constelação
de abutres como uma indecisão boiando
aos fundos de mim-quando há a ficção
citadina inacessível
entre o tempo da água e o destempero do asfalto
a destempo tento — ainda — criar poesia
/ ay llorona / olhos negros /
e crio silêncios. basaltos. silêncios
a fazerem sala às tuas perguntas
no horário nobre do despresente
faço um esforço — me recorto
dou um passo na via láctea
meus pés imprimindo a marca de água
e enquanto me arranco à imobilidade
/ as tuas perguntas /
a cidade se petrifica
basaltos. silêncios. solidões acústicas
presas na véspera — ou num dia advindo
a gastarem-se companhia
no horário nobre da vida
que é a fina presença da morte
agarro com força a escuridão
e dou mais um passo
o garoto de short azul na areia sentado
ficou ali com o olhar perdido no desenho de um nome
a cadeirante com o paninho de chão ao ar erguido
ficou ali com a mão esperando os 4 reais
o velho de 88 anos cansado demais
ficou ali com a expressão do primeiro estremecimento
do infarto
passo por todos passando neutra por mim mesma
vou direto à tua porta
enquanto junto pedaços
em morse
amar-se
em março
um amor se
maio
ainda for
tempo
estou batendo. batendo: atendo?
vai ficando tarde
tardo. estou abotoando
minha coragem
mudei de casa, de estação
mas de saudade não, não mudei
bem tentei, nos classificados nos bondes
mas teu olho esquerdo é tão
diferente do teu olho direito
ninguém mais desobediente
do que o confuso de peito
está ficando tarde. ok.
tenta apreciar o manuseio de horizontes
o plantio de um novo planeta
ainda intermitente
antes, te dedico a leve chuva
que rodeia os templos
o vento que se
ouve dentro:
invento
ainda sou muito nova para escrever este poema
percebo que a melancolia é um excesso
— de espaço e de tempo
percebo que sou dos cavalos que precisam
não do toque do chicote ou mesmo do sangue a rachar os ossos
mas do próprio desaparecimento
— para iniciar o trote
percebo e procuro seguir o conselho de ferlinghetti
ouvir meu próprio respirar e, de ouvido no chão, o girar da terra
depois, desaparafusar as portas mas não
jogar fora os parafusos
que eu ouça bem isto: não jogar fora os parafusos
não destruir o mundo se não tiver algo melhor para colocar no lugar dele
— é que por enquanto não tenho mesmo nada melhor em mente
estou aqui (onde mesmo?) com um saquinho de parafusos
pendurado ao pescoço (e é pesado)
mais uma vez, mais uma vez
o dedo suspenso a um milímetro do botão da bomba
e não estou conseguindo interpretar os sinais
sou ainda muito nova para escrever este poema
mas já sei que o canto dos pássaros é de desespero
também já percebi que saber não chegar é tão
bonito quanto: chegar
de boniteza estamos bem, lá isso estamos
the boniteza is the new felicidade
a cidade anda medindo meus passos
de lupas nas pontas dos tentáculos
de cima de baixo dos lados e na diagonal
sobretudo na diagonal: a luz mesmo a raspar
mas sem aderir à minha pele
que é real
que é real
ter medo é ainda desconhecer
corrijo: ter medo é ainda precisar conhecer
eu não estou conseguindo interpretar os sinais
corrijo: talvez não existam mesmo papéis dobradinhos atirados do além
é só isto: enquanto uso palavras, as palavras
usam-me
enquanto pergunto à montanha, a montanha
pergunta-me
enquanto continuo aqui, o aqui
continua-me
ah, ouve bem isto:
ver tudo bonito é ter descoberto a beleza das coisas feias
mas hoje eu estou cansada
então, dou o sorriso dos miseráveis e canto como quem desiste secretamente
não nos iludamos, meus vizinhos:
acabaremos sempre um pouco antes do fim
serei sempre muito nova para escrever este poema
no vazio pachorrento que te fura
por ali passa a centelha
e enquanto passa
dilata-o
estou imóvel
suspeito que me tornei um quadro
com debrum de areia pequenas conchas
e pontas de cigarro
à minha beira está o mar em março
ele desatentamente cospe nos meus pés. e através
de mim desamarro o vendaval morse
/ não escutes. ainda estou imóvel
sobre mim-onde há uma constelação
de abutres como uma indecisão boiando
aos fundos de mim-quando há a ficção
citadina inacessível
entre o tempo da água e o destempero do asfalto
a destempo tento — ainda — criar poesia
/ ay llorona / olhos negros /
e crio silêncios. basaltos. silêncios
a fazerem sala às tuas perguntas
no horário nobre do despresente
faço um esforço — me recorto
dou um passo na via láctea
meus pés imprimindo a marca de água
e enquanto me arranco à imobilidade
/ as tuas perguntas /
a cidade se petrifica
basaltos. silêncios. solidões acústicas
presas na véspera — ou num dia advindo
a gastarem-se companhia
no horário nobre da vida
que é a fina presença da morte
agarro com força a escuridão
e dou mais um passo
o garoto de short azul na areia sentado
ficou ali com o olhar perdido no desenho de um nome
a cadeirante com o paninho de chão ao ar erguido
ficou ali com a mão esperando os 4 reais
o velho de 88 anos cansado demais
ficou ali com a expressão do primeiro estremecimento
do infarto
passo por todos passando neutra por mim mesma
vou direto à tua porta
enquanto junto pedaços
em morse
amar-se
em março
um amor se
maio
ainda for
tempo
estou batendo. batendo: atendo?
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dedicatóriavai ficando tarde
tardo. estou abotoando
minha coragem
mudei de casa, de estação
mas de saudade não, não mudei
bem tentei, nos classificados nos bondes
mas teu olho esquerdo é tão
diferente do teu olho direito
ninguém mais desobediente
do que o confuso de peito
está ficando tarde. ok.
tenta apreciar o manuseio de horizontes
o plantio de um novo planeta
ainda intermitente
antes, te dedico a leve chuva
que rodeia os templos
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a(l)titudeo vento que se
ouve dentro:
invento
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fóton
isso era no tempo em que
a luz de maio entrava
pontualmente
às quatro da tarde naquela
avenida da Urca com aquela
soberba dourada bêbeda de américa
e se refratava nos recortes
insuspeitos dos troncos dos coqueiros
do alcatrão malemolente
para finalmente se alojar
em algum indício corpóre
de uma microexplosão
e durava quatro minutos
precisamente — a luz dos maios rotos
e logo mais à frente
o verde dos morros
a respirar nuvens
isso era no tempo
em que maio explodia e éramos jovens
de nós — e logo esplendia
pelos ralos tudo que escrevíamos
com luz
a luz de maio entrava
pontualmente
às quatro da tarde naquela
avenida da Urca com aquela
soberba dourada bêbeda de américa
e se refratava nos recortes
insuspeitos dos troncos dos coqueiros
do alcatrão malemolente
para finalmente se alojar
em algum indício corpóre
de uma microexplosão
e durava quatro minutos
precisamente — a luz dos maios rotos
e logo mais à frente
o verde dos morros
a respirar nuvens
isso era no tempo
em que maio explodia e éramos jovens
de nós — e logo esplendia
pelos ralos tudo que escrevíamos
com luz
os poemas acima fazem parte do livro outono azul a sul (Ed. Urutau, Portugal & Brasil, 2018) |
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percebo que a melancolia é um excesso
— de espaço e de tempo
percebo que sou dos cavalos que precisam
não do toque do chicote ou mesmo do sangue a rachar os ossos
mas do próprio desaparecimento
— para iniciar o trote
percebo e procuro seguir o conselho de ferlinghetti
ouvir meu próprio respirar e, de ouvido no chão, o girar da terra
depois, desaparafusar as portas mas não
jogar fora os parafusos
que eu ouça bem isto: não jogar fora os parafusos
não destruir o mundo se não tiver algo melhor para colocar no lugar dele
— é que por enquanto não tenho mesmo nada melhor em mente
estou aqui (onde mesmo?) com um saquinho de parafusos
pendurado ao pescoço (e é pesado)
mais uma vez, mais uma vez
o dedo suspenso a um milímetro do botão da bomba
e não estou conseguindo interpretar os sinais
sou ainda muito nova para escrever este poema
mas já sei que o canto dos pássaros é de desespero
também já percebi que saber não chegar é tão
bonito quanto: chegar
de boniteza estamos bem, lá isso estamos
the boniteza is the new felicidade
a cidade anda medindo meus passos
de lupas nas pontas dos tentáculos
de cima de baixo dos lados e na diagonal
sobretudo na diagonal: a luz mesmo a raspar
mas sem aderir à minha pele
que é real
que é real
ter medo é ainda desconhecer
corrijo: ter medo é ainda precisar conhecer
eu não estou conseguindo interpretar os sinais
corrijo: talvez não existam mesmo papéis dobradinhos atirados do além
é só isto: enquanto uso palavras, as palavras
usam-me
enquanto pergunto à montanha, a montanha
pergunta-me
enquanto continuo aqui, o aqui
continua-me
ah, ouve bem isto:
ver tudo bonito é ter descoberto a beleza das coisas feias
mas hoje eu estou cansada
então, dou o sorriso dos miseráveis e canto como quem desiste secretamente
não nos iludamos, meus vizinhos:
acabaremos sempre um pouco antes do fim
serei sempre muito nova para escrever este poema
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[dum lugar íntimo do espanto]no vazio pachorrento que te fura
por ali passa a centelha
e enquanto passa
dilata-o
calí boreaz nasceu em Portugal, onde estudou Direito, em Lisboa, em meio às noites de fado e flamenco. Viveu em Bucareste, na Romênia, onde estudou língua e literatura romena e tradução literária. No virar de 2009 para 2010, atravessa o Atlântico rumo ao sul para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, Portugal & Brasil, 2018], é um relato poético do exílio e da clandestinidade, e tem posfácio de João Almino e desenhos de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. calí integra a coleção Identidade vol. II da Amazon Kindle [2019] com o conto islandeses. Seus textos têm aparecido também em várias revistas literárias brasileiras, portuguesas e galegas, bem como em exposições de Portugal e da Índia. Em 2020, surge seu segundo livro de poesia, tesserato, pela Caos & Letras. [casas virtuais: caliboreaz.com | @caliboreaz]
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