Entre um poema e outro,
o que me aflige é a lucidez da cena muda:
o mato crescendo nos seus espaços,
onde tudo é silêncio e desperdício.
Prendo o fôlego dentro do poema
sem desistir de respirar, no entanto
- até o fim da apneia,
meus pulmões serão líquidos -.
Expelirei somente
o que não for algum delírio.
*************
Distopia
Não há utopias à vista,
nem nos sonhos
dos próximos recém-nascidos.
Dias correm como as frentes frias
e ainda não se inventou uma vacina
contra o vírus que transforma pés em cascos.
Logo, florestas caberão em terraços
e os livros servirão como calços,
utensílios erguidos às virtudes da ignorância.
A expansão da fronteira agrícola
não respeitará os semáforos
e as ruas darão lugar a abundantes pastos.
A Terra, enfim, depois de tantas tentativas,
assumirá a forma cúbica e a escatologia
terá o status de ciências humanas.
Os analgésicos não aliviarão sequer as dores.
Personagens anacrônicas da nova ordem,
as flores germinarão da exceção dos jardins.
E o vinho, sem as propriedades curativas
da embriaguez, será como memória que se derrama,
nódoa indelével nesta toalha branca de mesa.
*************
Dias cinzentos
Cai a chuva
sobre a minha cabeça.
Não tenho pressa,
sorvo a elegia da manhã.
Toda a água já foi tratada,
dessalinizada a lágrima.
Manhãs de chuva
não são necessariamente frias
e a saudade nem sempre
se tinge de cinza.
Tardio, embora,
diminuo o passo
até que tudo
se faça imóvel.
O sol vai despontar.
Mas não agora.
*************
Dois capuccinos
Dois cappuccinos
sobre o acre da mesa.
Nas bordas, escombros
de vésperas, sob céus diferentes,
buscavam o mesmo sol.
Pisando em cacos de vidro,
desviavam-se de si mesmos
e, embora dissessem todas as letras,
não pronunciavam as palavras.
Seria arriscado demais falar
para além de suas próprias sombras.
Era preciso não pedir a conta
enquanto não terminava o dia.
Fazia inverno em pleno março
e os cappuccinos ainda aqueciam
as chávenas frias.
*************
A última linha da tarde
Corpo que não envelhece
em barril de carvalho, mas
ao tempo, na intempérie
do forro e da pele, verniz,
máscara da carne, mapa
de relevo acidentado, cacos,
caricatura, estilhaços,
linguagem de sinais:
a ruga, talho do relógio,
que abre fenda até os ossos;
caminho sem volta por onde
corre, escorre o fio da memória.
A nudez, grave gravidade,
espólio dos espelhos enegrecidos,
flagrância captada e retida
nas cataratas da retina.
O frio que corta, cortante,
frêmito, ferida que sangra
em silêncio, gota a gota,
poro a poro e não cicatriza.
A última linha da tarde
se consome na sombra
do tempo que se move,
decalcado no corpo nu.
*************
Felipe Fleury é formado em Direito, funcionário público e mora na cidade de Petrópolis/RJ. Seus poemas integram as antologias dos 33º. e 34º. festivais poéticos do SESC/PR, 2017 e 2018, a antologia em e-book do concurso de poesias da Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ-2018) e foram publicados na Revista Mallarmargens. É um dos organizadores do sarau poético “Saracura”, na cidade de Petrópolis.
Comentários
Postar um comentário