Não chamas o deus,
ser não físico, sem matéria,
sem húmus, amo,
não queimará nenhuma lembrança,
a força que fará
não tem água,
não apaga,
ele próprio não queima.
O pesadelo em teu quarto,
gás vazado,
fósforo acesso, estalos,
os dedos se estalaram,
o crime de tenebrosa vertigem,
morra,
a casa fica fora da área de perigo,
habitantes ausentes na festa,
habitantes fugitivos
da guerra sem deus,
atravessam o mar
num navio em chamas.
Não habitará nenhuma
casa humana,
na criação da terra
o deus fez terra e mar,
oceano é palavra moderna,
queimou as paredes,
vejam – a intimidade
do homem exposta.
O homem ficou sem paredes,
o quarto sem segredos,
queimou, junto das páginas
dum livro antigo de Machado,
junto a cartas,
cigarros febris, famintas chamas,
chamas
chamas o deus,
ele não é como tu de carne,
não queima,
não morre
e vira mármore frio,
terra e pó,
cinzas da tarde quente,
o paraíso ficou na parte
obscura dos olhos,
ficou na parte seca dos braços.
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É no meio da noite
Durante a terrível tempestade,
no meio da noite,
a boca seca, a paixão a secar também,
as horas são desérticas,
tristes como um homem sem seu amor,
feito cacto, terra arrida,
casa vazia em dia de festa.
é no meio da noite que o búfalo
atravessa o campo, na escuridão,
observa com atenção os homens
se armarem, munidos,
a arma de fogo contra o peito,
os pensamentos não fazem efeitos
o remédio é vencido, a nuvem
se desfaz da chuva, se desfaz,
o mar aberto, o homem triste,
pernas abertas, líquido,
a outra nuvem chega,
a outra nuvem é feita de gafanhotos,
devora.
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Arapinã
a ponte e o nome
o rio corre em baixo
tintas de sangue
ilusão vermelha
(timbu u u
u u m)
volta com vísceras nas mãos
o pensamento do menino molhado
já sem cabeça
troco &
membros
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Urinduba
A fresta que se abre feito ferida,
a casa erguida sem sustento,
que corre sozinha
todos os dias,
nas ruas movimentadas
da cidade,
paredes invisíveis,
sentimentos repugnantes,
mas nada disso se ver
no açougue da esquina,
na ferra que tritura os ossos
e faz ruminar
a paisagem cansativa do amor
no olhar de quem
despedaça a carne morta,
cubos, quadrados,
tiras e pedaços,
mas nada disso se ver
na casa do poeta,
nas mãos pobres
de quem treina o latim,
busca a raiz da palavra “flutuação”,
dicionários, livros e fórmulas,
mas tudo isso é em vão,
com ou sem força
o guarda-chuva se abre,
cobre o sol, o amor,
a pessoa amada e a conjugação,
o estado mata, cria funções
desconhecidas das línguas,
proporções,
antíteses, esconde segredos
e corpos,
mas o corpo morto
carrega uma montanha,
esconde um cão
dentro da boca,
fala com a criança
ainda morta dentro
da mãe,
transporta as águas do rio Urinduba
até o deserto,
imunda todo o planeta,
canta dentro de uma igreja
caída,
ruinas de uma casa,
o pão, a carne,
feito sangue a água
corre.
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Domingos infelizes
Piscina de beira:
de praia
do abismo
(rasa)
Entre muros.
pés
manga-cajus-arvoredo
(ara)
Piscina feita para
solidão
corta
a
(asa)
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Mortos
São duas da tarde
você acorda
seu vizinho martela
infernalmente algo na casa dele
chegas a pensar que é na porta
que batem
mas não
você é sozinho
ele parou...
depois que te acordou ele parou
sabe lá o que ele estava pregando,
penso que seja o corpo
de suas crianças
mortas na cozinha,
seus desastres imóveis
na ideia fixa de felicidade
logo lembro que
a vida particular de um
homem não me interessa
levanto e passo a martelar
com força meus leves
surtos na parede
não acordo meus mortos
domésticos
meus abismos onipresentes
alguém dessa vez bate na porta
é o vizinho pedindo
para acabar com
tanto barulho
antes dele piscar os olhos
lhe beijo a boca por
não sei se amor ou ódio.
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Marcos Samuel Costa é natural de Ponta de Pedras - Ilha de Marajó - Amazônia brasileira. Poeta, contista, cronista e romancista, vem se destacando no cenário da produção do Norte. Atualmente cursa Serviço Social UFPA e mora em Belém do Pará. Vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. Autor dos livros de poemas: Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), Uma semana de poesia (Editora Penalux, 2016), Caminhos para Longitude (Ed. Kazuá, 2019); do romance Dentro de um peixe (ed. Folheando, 2020); o livro infantil “Memórias quase póstumas de um pato”, em parceria com Miriam Daher. Publicou “Semblantes de nós” (ed. Folheando, 2018) em parceria com a poeta Ana Meireles. Participou de mais de 20 antologias literárias e publicou nas revistas: Mallarmargens, contemporArtes, Marinatambalo, Gueto, e Ruído Manifesto, entre outras. Mantém o blog, Someplace (2010-2020), onde divulga sua produção, e é um dos editores do Jornal Crescendo.
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