Pular para o conteúdo principal

Beatriz Férre | três poemas


virtuosa


reclusa, curvada sobre si

mesma como a uma 

harpa

puxa cordas-tempo

que vibram aço nylon

e sangue e dúvida

pirateando o sentir

navegando o som talvez 

tímida mas 

sem pausa: 

há somente o instante,

janela para o outro,

e seu corpo, a 

jogar-se


***

tussígeno


um dia, trombetas soarão

anunciando que é chegado o fim

e que não há mais solidão

ou pelo menos que há algo novo

para nos infernizar


até lá, é esse fardo

- grito sem dono, carro, cubos de luz

altos pessoas trancadas

olho que vê sem ler 

nada mão cheia sem ter 

palma

morte na capital

no interior não sei te dizer 

quando penso me engasgo

prefiro a violência

que não olho se olho

não guardo

olha aí já quero tossir

- o mundo todo

entalado 

deus um dia engole

esse nó que sou 

em sua garganta divinal

até lá, é mais do mesmo

esse fardo



***

toalha embaixo do corpo que é para não molhar o assento do carro


corta o ar um segredo

que carrega em si urgência.

mas cuidado.

o momento é de silêncio.

cada pessoa um molusco

em sua concha de memória e medo,

enrolados como bebês em toalhas,

fios salgados de dias

que crescem pela cabeça

grudados na pele.

tão gulosa é a pele

sente tudo e não diz nada.


você se remove do instante

como uma palavra que foge à cabeça

seu corpo um estranho obelisco

perdido na areia fria,

só uma tarde se passou

e já esquecemos de onde viemos,

você nega aquele dia

com a indiferença de um animal

que nada deve a homens de razão

mas da sua moleira os fios longos

traem cada hora,

minuto segundo

retratos verticais

do que você nem pro mar

quer contar

não precisa falar nada, as ondas rugem

os olhos da tarde semicerrados

em repreensão

o mar responde quem não pergunta

ele diz que já sabe

estava lá,

escondido,

estava lá

quando aconteceu.


***

Beatriz Férre é designer e universitária da área de computação, nascida e criada na cidade do Recife. Aos 21 anos, além dos estudos acadêmicos e atuação com design de produtos, Beatriz investe em suas invenções artísticas, de fotografias e desenhos a poemas e contos, na tentativa de manter a criativa Beatriz de 7 anos sempre viva. Mais dessas invenções podem ser encontradas no Instagram @gausguin e no seu site, urumuru.blogspot.com


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Marina Magalhães | três poemas

Prelúdios do afogamento. Para violino. Por fim, quando deixarás de alimentar os teus naufrágios? Me perguntaste sem saber que tripulação alguma deseja a própria morte. Nada podem fazer se a carcaça, já tão cheia de buracos, continua       sempre            a afundar.                   A marcha                   fúnebre faz                   glub.                   glub.                   g                   l                   u                   b. *********** Amor de prateleira Os dias vêm sobrando, transbordadas as horas pelo vidro. Tempo deixado em conserva é salgado demais p...

Francielle Villaça | três poemas

Alongamento A dor nos encurrala para o presente ************ Exercitar o conformismo mesmo que por um instante, ou melhor: ainda que por um instante sobretudo por mais um instante. Não, não atenuaremos o confronto: o conformismo nos atenta ao instante pouco a pouco até que os ossos estalem. ************ O freio de emergência habita alguma extremidade Tudo que é radical é, imanentemente, radical demais. Porque não há raiz sem mergulho. Porque ir até a raiz exige destreza, perícia, coragem. Raiz: palavra aguda. Palavra que destrona qualquer ilusão de fincar vida na superfície. Enraizar é um trabalho árduo. Mas, que em sua essência aguda, não vê outra possibilidade se não fincar. Fincar. Fincar em solo firme, fértil, mas nunca estável. Encurralados, a saída está na profundidade do nosso mergulho. ************* Francielle Villaça tem 20 anos, nasceu e mora em Vila Velha, no Espírito Santo. Atualmente cursa Letras - Português, na Universidade Federal do Espírito ...

Marcos Samuel Costa | seis poemas

Chamas  Não chamas o deus, ser não físico, sem matéria, sem húmus, amo, não queimará nenhuma lembrança, a força que fará não tem água, não apaga, ele próprio não queima. O pesadelo em teu quarto, gás vazado, fósforo acesso, estalos, os dedos se estalaram, o crime de tenebrosa vertigem, morra, a casa fica fora da área de perigo, habitantes ausentes na festa, habitantes fugitivos da guerra sem deus, atravessam o mar num navio em chamas. Não habitará nenhuma casa humana, na criação da terra o deus fez terra e mar, oceano é palavra moderna, queimou as paredes, vejam – a intimidade do homem exposta. O homem ficou sem paredes, o quarto sem segredos, queimou, junto das páginas dum livro antigo de Machado, junto a cartas, cigarros febris, famintas chamas, chamas chamas o deus, ele não é como tu de carne, não queima, não morre e vira mármore frio, terra e pó, cinzas da tarde quente, o paraíso ficou na parte obscura dos olhos, ficou na parte seca dos braços. ************ É no meio ...